20 março 2010

A cor

Foto de Marta Jorge

Quando comecei a visitar Bissau partia-se de manhã, bem cedo, o que significava acordar a meio da noite, marcar táxi de véspera, pôr despertador, fechar malas antes de adormecer. Tudo procedimentos pouco compatíveis com uma improvisadora nata, originando uma angustiazinha que só desaparecia quando fechava o cinto de segurança e me entregava nas mãos da TAP. Durante umas horas iam tratar de mim e eu estava simplesmente proíbida de tratar fosse do que fosse. Sensação boa, coroada com a grande vantagem de aterrar de dia, depois de sobrevoar o deserto e por fim o verde, verde da Guiné-Bissau.

De há uns anos para cá a viagem faz-se de noite e não gosto mesmo nada daquela meia luz um pouco deprimente que me mostra os meus companheiros de viagem no seu ângulo menos favorável: cabeças que baloiçam, corpos torcidos, pés descalços. Aterragem na mais completa escuridão, sem paisagem. E depois do purgatório da espera pelas bagagens vai-se directo para a cama, sem escapadela possível.

De manhã salto para a rua e mergulho de imediato na cor. Viva, variada, intensa. É um impacto tão forte que justifica só por si a viagem. Não há visita que supere este prazer da cor que torna todos os objectos do quotidiano tão importantes e transforma todos os trajes em verdadeiros figurinos.

E venham falar-me de museus!

19 março 2010

A luta continua

Temo que o meu desejo de rechear este blog com muitos, muitos posts durante a minha visita a Bissau não venha a ser mais do que isso - um desejo. No local em que estou a residir a net funciona tão mal, mas mesmo tão mal, que é melhor considerar que não existe se quiser manter a minha saúde mental num nível aceitável. E posso-me dar por satisfeita por já não ter necessidade dela para trabalhar.

Resta-me esperar por melhores tempos tecnológicos.

15 março 2010

Chegada

2 da madrugada, aeroporto Osvaldo Vieira.

Burburinho bem menor do que o de há anos pois o avião semanal deu lugar aos poucos a três mais pequenos. Malas abertas mostrando que o autocolante da Cooperação Portuguesa faz alguma falta. Mas tudo se passa com grande calma, muitos sorrisos e ordem quase imediata para fechar.

Em fundo, relato dum jogo do Benfica com belo som de um LCD novo em folha. Luxo! Pequenas novidades que fazem sorrir.

Comentário de neta, via email: "Não haverá melhor coisa em que gastar o dinheiro?" Mas dá logo o mote ao recém-desembarcado: televisão e futebol, dois bens de alto valor nesta terra carente, carente ...

E a envolver tudo, o calor misturado com uma humidade visível a olho nu.

13 março 2010

Capulanas

O meu primeiro contacto com as capulanas aconteceu em Moçambique, no final dos anos 80. O artesanato era aí de perder a cabeça, apesar da guerra civil, e os panos entusiasmaram-me. Desde então nunca mais fiz uma mala, fosse para fim-de-semana, férias ou missão, sem meter dentro duas ou três capulanas.

São o objecto polivalente por excelência. Já foram lençóis em situações bem difíceis (lembro-me de Porto Amboim em 1990 e de Bombaim em 2000) e também toalhas e lençol de banho. No sector da decoração tapam mesas e sofás em casas de férias, para além do uso mais banal como toalhas de praia.

São leves, pouco volumosas, o ideal para meter na mala para o que der e vier. Dão-me segurança, permitindo-me sentir em casa quando a situação é menos confortável. É a última peça a meter na mala, tapando todo o recheio e a primeira a dar-me as boas vindas quando a abro num novo local. Adoro malas de viagem e para mim elas não existem sem capulanas.

Desta vez esperam-me os amigos e, à volta deles, o conhecido. As capulanas terão pois uma missão de menor responsabilidade.

12 março 2010

Quase

Foto de Sofia Fernandes

A ida aproxima-se. Passaporte novo, agora de turista, mala à mão, mails de preparação recebidos e enviados. Pela prmeira vez vou conhecer Bissau com tempo para olhar, parar, continuar a olhar. Espero que com a minha máquina fotográfica nova saiba colher e guardar as cores de que tantas saudades tenho.

E vou poder dar um pontapé fatal a este inverno que, depois de muitos outros tropicias, tão penoso tem sido para mim.

Quando voltar, espero ter uma nova primavera para me receber.

08 março 2010

Pastéis de molho

foto publicada aqui

É a mais famosa iguaria covilhanense, inventariada pela Maria de Lurdes Modesto nesse monumento cultural que é a "Cozinha Tradicional Portuguesa". Quando comecei a ir regularmente à Covilhã ainda se falava muito da sua estadia na terra para recolher as receitas e em casa de quem tinha comido o quê.

Apesar de se tratar de um prato que, de tão bizarro, tem na sua origem forçosamente uma história interessante, nunca ouvi falar dela pois são comidos pelos autóctones com um ar perfeitamente normal, como se de nada de estranho se tratasse.

Imaginem um pastel feito de uma massa folhada que quase nada tem a ver com a que dá por esse nome por ser muito mais grossa e nos chegar às mãos dura e quebradiça. Dobrados em meia-lua, têm dentro um pouco, muito pouco, de recheio de carne sobre o qual nada há a acrescentar. Noutros tempos vinham acompanhados por um papelinho dobrado sobre uns fios do precioso açafrão (nada tem a ver com o açafrão das Indias, claro) mas há muito que o preço astronómico do dito passou a obrigar cada um a comprá-lo por sua conta ... na farmácia!

Em casa ferve-se água com sal, um grande ramo de salsa, bastante vinagre e a dita especiaria. Ferve um bocado. Nos pratos de sopa colocam-se os pastéis (um ou dois por pessoa)e deitam-se por cima umas conchas do molho, bem fumegante, cobrindo de imediato com outro prato invertido para que inchem.

Agora que a Covilhã se transformou em cidade universitária (ouvi falar de 8000 alunos e professores), grande parte da população desconhece do que se trata (o que não é de espantar atendendo ao exotismo da receita), comendo-os portanto como pastéis folhados. Comprei alguns no mercado unicamente para tirar a fotografia pois constatei, só pelo aspecto, que não serviriam para comer. A massa era fina e jamais resistiria inteira ao caldo a ferver. Uma pergunta ao vendedor e deu para perceber de imediato que ele não era da cidade. Até desconhecia que os pastéis de molho se comem com molho!

Estava portanto verificada a justeza do comentário, muitas vezes feito pela minha sogra, segundo o qual os pastéis foram sempre comidos exclusivamente na Covilhã, sendo estranhos mesmo para as gentes dos arredores da cidade. E ela acrescentava, com manifesto orgulho: "Só os covilhanenses gostam dos pastéis de molho. Os covilhanenses e as minhas noras!". O que só prova a inteligência das noras e o sentido de humor da sogra.