29 março 2009

Cadeiras

Sonhamos com uma África que possa ser para nós um retorno à Natureza, ao biológico, ao verde. Em que homens animais e plantas ... Tropeçamos em cadeiras de plástico espalhadas pelas tabankas mais escondidas, substituindo os bancos de madeira. E perguntamo-nos como vai ser a terra capaz de engolir e digerir tal quantidade de plástico. Mas até nós no projecto já as compramos de cada vez que é preciso, rapidamente e a baixo custo, equipar uma sala de formação. São tão baratas e estão tão acessíveis! E até são bonitas quando empilhadas à porta, juntamente com tudo o mais. Depois, retiradas do conjunto, perdem a graça voltando a ganhar beleza quando as vemos, à volta das mesas, com um grupo de professores "dentro". Trabalhando para o futuro, tentamos esquecê-lo.

27 março 2009

Máquinas de costura

Vêem-se em cada esquina de Bissau, geralmente à porta de casa, muitas vezes sob alpendres. Todos os dias da semana.
Durante muitos anos tive uma Singer parecida com estas. Fora herdada de casa de meus pais, onde era usada diariamente, muitas vezes pela minha mãe de quem houve quem herdasse os talentos. Serviu para enxovais de meninas casadoiras, hoje já avós, e de bebés, hoje já mães e pais. Em minha casa continuou a ser usada semanalmente pela D. Margarida, figura importante na minha nova família, "herdada" ela também.
Com toda esta história não admira que me fosse tão difícil desfazer dela, quando entrou a primeira portátil em cena. Encontrei-lhe um destino digno aqui em Bissau, terra sem energia eléctrica. Uma preciosidade!
Agora quero montar um atelier de costura num dos liceus onde trabalhamos. Tenho transporte em Abril, a partir de Lisboa. Há por aí alguma máquina pronta a renascer nestas paragens?
Ficarei, no entanto, com um problema para resolver. Nunca vi uma mulher guineense sentada a uma máquina de costura. Como hei-de introduzir a questão do género? Não quero ser acusada de boicotar um dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio* se aceitar os usos e costumes.
* ODM 3 - Promover a igualdade de género (até 2015).

25 março 2009

Bananas

Trabalhar rente ao chão, com porta para a rua, é uma experiência única embora por vezes embaraçosa. Há dias em que mais parece que Bissau inteira decidiu descer ao centro e, já agora, ir propor qualquer coisa ao gabinete de coordenação do PASEG.
Por entre as cortinas, vejo olhos e sorrisos à espreita, muitas vezes encimados por uma bandeja com bananas. Devo ser a melhor compradora de bananas da cidade e essa informação passa de boca em boca, embora me pareça que o acesso à minha pessoa obedece a regras bem claras de prioridade.
Consigo, com dificuldade, não as comprar todos os dias.
Ontem foi dia de bananas.

23 março 2009

Pé de cabaça

Tenho esta árvore surpreendente bem diante dos meus olhos todos os dias, ao acordar. Esperar-se-ia que os frutos crescessem junto ao chão, quais melancias ou abóboras, e eis que eles ali estão, enormes e pendurados. Depois de secos tornam-se nos mais belos recipientes, de todos os tamanhos, e também em instrumentos musicais, com nomes exóticos.
Por enquanto os alguidares de plástico, cada vez mais populares, ainda não destronaram por completo as belas cabaças.
Quanto à polpa, nada sei dela. Não consta que seja comida por homens ou animais.

19 março 2009

Jagudis

Foto de Mónica Musoni
São abutres enormes. A percepção do primeiro, depois de um outro, e a constatação de que estão por todo o lado, tal como pombos nas nossas cidades, era, até há pouco, um dos primeiros choques que sofria quem chegava a Bissau.
Diz-se que são muito queridos dos guineenses e que no tempo colonial era mesmo proibido matá-los por terem um papel importante na limpeza da cidade. Tentei conferir esta informação e constatei que pelo menos os jovens desconhecem-na. Tal como na Europa associam-nos a cadáveres e quanto a carinho ... nada!
Hoje há menos abutres poisados nos muros dos quintais e nos passeios do centro da cidade do que quando visitei Bissau pela primeira vez. Pairam lá no alto, constantemente, pintalgando de asas negras o céu desmaiado.
De vez em quando descubro locais da sua preferência e fico a olhar estarrecida.

18 março 2009

Nescafé

Fotos de Bruno Fangueiro e Natália Cardoso
Há uns anos cheguei a Bissau e comecei a tropeçar nuns carrinhos de vendedores de café. Tinham todos a forma exacta de uma lata de Nescafé e, como equipamento, um grande termos para a água quente, uns copos e pouco mais. Deu-me que pensar porque a réplica da lata era perfeita o que apontava para terem sido fornecidos pela própria Nestlé. Uma multi-nacional a produzir carrinhos para vendedores ambulantes, num dos países mais pobres do mundo? Algo nisto me intrigou mas não consegui informação. Cheguei a pensar em micro-crédito … O tempo foi passando e os carrinhos em forma de lata foram-se deteriorando. Ao mesmo tempo, foram sendo substituídos por versões locais, bem mais criativas, que contudo mantinham a referência à marca. Agora já há muitos que nem isso têm e há pouco tempo comecei a encontrar alguns com um número de registo na Câmara Municipal de Bissau. Tenho pena de não ter comigo uma fotografia dos primeiros carrinhos, impecáveis. Agora já só encontrei o da primeira fotografia, em local de grande concentração de venda ambulante. Muito estragado, mas foi por aí que tudo começou. Descobrir que papel teve a Nestlé nisto tudo não vai ser tarefa fácil. Mas hei-de conseguir.

14 março 2009

Made in

O comércio não tradicional nesta cidade é escasso e de baixa qualidade. Ir ao supermercado (mais mini que super) é, assim, ocasião para nos lembrarmos que estamos num dos países mais pobres do mundo, para onde poucos estrangeiros vêm viver. Se nem os políticos responsáveis pelos caminhos do mundo saem do aeroporto para se encontrarem com os seus homólogos! Dispondo de um nahr na porta ao lado, com comerciantes que até já me entendem, não ia há muito aos dois supermercados da terra. Fui lá há dias, passeei-me à procura de novidades e encontrei duas de monta. Uma diz respeito à prateleira dos vinhos que duplicou de tamanho. Onde havia 4 ou 5 qualidades de vinhos de qualidade média/baixa há agora grande variedade de óptmos vinhos portugueses. Caríssimos, claro. Deu-me que pensar, até me ter lembrado da abertura de uma certa Embaixada. Estava explicado. A outra novidade foi bem mais interessante. Encontrei este vinagre de lima que, para além de ser made in Guiné-Bissau, tem este rótulo lindíssimo. Há tão poucos produtos transformados no país que esta descoberta foi um sinal de esperança de que estamos todos bem precisados. Ganhei o dia!

12 março 2009

Mercado Central

(Esta mensagem foi escrita 3 dias antes dos assassinatos do PR e do CEMGFA).

Bissau é uma cidade à minha escala. Isso dá-lhe um ambiente familiar, de quintal de casa de férias, onde nada de muito entusiasmante se passa mas onde os perigos não são também dos maiores. É curioso isto, se se pensar que a instabilidade política está sempre à espreita.

O Mercado Central é um exemplo disso. Nada tem de muito interessante e é a sua pequena dimensão, bem no centro da cidade, que lhe confere importância. Ou conferia porque há alguns anos acordei com a notícia de que o Mercado Central tinha ardido durante a noite.

Desaparecido o último fumo, secas as lágrimas de quem tinha perdido toda a mercadoria (sobretudo castanha de caju e artesanato) o assunto resolveu-se da forma mais simples: os vendedores passaram do interior para o passeio em frente e lá improvisaram as necessárias bancas. Uma grande bagunça invadiu a rua mas não é isso próprio de todas as ruas à volta de mercados?

Passados os anos, tudo se mantém tal e qual. Chegou-se a falar que Portugal pagaria a reabilitação mas afinal há dias soube que vai ser o Banco Africano de Desenvolvimento o financiador. Alegrei-me até ontem, quando me contaram que está prevista a construção de lojas sobre o mercado e que o edifício terá quatro andares. Irá então virar Centro Comercial como este?

Todo o centro de Bissau vai ser irremediavelmente afectado por um crime urbanístico deste calibre. Para a desgraça ser completa só ficará a faltar arrancarem as mangueiras da zona (algumas já o foram).

Já não me bastava a raiva com o que vejo fazer em Lisboa. Agora tenho duas cidades para me fazerem sofrer.

11 março 2009

Esperança

Enterra-se os mortos, cuida-se dos feridos. Os guineenses estão todos um pouco feridos pelo que o nosso trabalho é agora ainda mais importante. E para crise global, esperança global. Também aqui. CADOGO – Diminutivo de Carlos Gomes Júnior, Primeiro Ministro da Guiné-Bissau, eleito com maioria absoluta, em Novembro de 2008.

08 março 2009

Aziz

É meu vizinho pois trabalha na mercearia mesmo ao lado do meu gabinete, no centro de Bissau. A nossa relação faz-se de chegadas e partidas e também de comércio pois, desde que a loja abriu, abasteço-me nela. A ida à rua do mercado, que tão importante era para mim quando estava de passagem, passou a ser demasiado pesada, enquanto residente. Abrir a porta do carro já é um problema, tantos são os vendedores a exibirem os produtos e a chamarem pelo meu nome.
O Aziz é pois uma pessoa importante no meu dia-a-dia. Só que o começo da nossa relação não foi fácil.
Ele é mauritano, recém-chegado a Bissau quando a loja mudou de dono e ele foi contratado. Não falava uma palavra de português, como é natural, e começou a aprender crioulo, como é natural. Como os clientes são quase exclusivamente professores portugueses, achei que devia mostrar as vantagens da aprendizagem do português. Usei os argumentos habituais, com muitos gestos para ajudar. Como se defende tal causa exactamente na língua que se quer que ele venha a conhecer um dia?
A reacção foi péssima e disse-me que falava francês e que eu devia aprender também para falar com ele. Expliquei-lhe que sabia falar francês e que o fazia quando ia a França ou ao Senegal. Na Guiné-Bissau falava a língua oficial.
O clima ficou mau porque é difícil que fique bom quando as pessoas se zangam e não falam a mesma língua. Decidi que não fazia lá mais compras. Mas o Aziz está sempre à porta e no dia seguinte tive que dar os bons dias e à tarde tive que me despedir. A situação não era propícia a declarações de guerra e passados uns dias comprei lá os únicos ovos em que confio.
O Aziz foi aprendendo um pouco, embora não se ande a esforçar muito, e agora já conversamos. Bom, conversar … quase! Sorrimos é muito, mas já em português.

06 março 2009

Mangueiras

Mangueira em flor fotografada por Sofia Fernandes
Soube há poucos dias aqui que as árvores têm uma vida anterior, o que certamente explica a sua força e o seu mistério.
Elas têm uma tal carga que, em 1949, Karl Koch criou o seu Teste da Árvore, muito em moda nos anos 60 e que fez as delícias da classe nascente dos psicólogos portugueses.
“Desenhe uma árvore …” o que faz de imediato pensar em “Dessine-moi un mouton …”. Quando me foi feito o pedido, no fim da adolescência, desenhei-a frondosa e, tal como me fora indicado, não era uma árvore concreta. Julgava eu.
Ao chegar a primeira vez a Bissau vi a minha árvore por todo o lado, repetida ao longo dos passeios. Ao longo e não nos passeios porque as árvores em Bissau têm honras de asfalto, quando ainda resta algum.

05 março 2009

de Bissau (2)

Que outro país tem a capacidade de, em plena adversidade, serenamente continuar em frente, com o mesmo sorriso? Lá estava o Juvenal como sempre "Lava carro?", "Jornais?" Hoje, como me viu carregar manuais, ajudou prontamente e acrescentou "Manual?" Em que classe andas, Juvenal? 8ª E tu Michel (Platini)? 5ª classe E os professores têm manual? Não Vamos ver, sim? Próxima semana trago. Não lava carro? Não, hoje não. E lá foram. Arranquei, a porta de trás mal fechada. Parei e lá veio o Juvenal a correr, rua fora, para a fechar. É assim Bissau. É assim, de novo, Bissau. A vida continua, com tristeza.

03 março 2009

de Bissau

Pedem-me que diga como está isto e agora que tenho um blog espera-se isso de mim. Pois estou bem e está tudo mal, muito mal. Sente-se nesta cidade uma enorme tristeza. Os guineenses estão tristes e cansados. Nesta noite terrível houve fantasmas de 98 que saltaram para cena. Houve medo nos bairros de Bissau. Lá está-se vulnerável pois não há grossas paredes para proteger nem que seja do estrondo das bombas. Está-se rente ao chão ... à mercê. Para além do medo há vergonha. Vergonha de terem um país que só é notícia pelas piores razões (como se diz em linguagem de noticiário). Um país onde se matam os dirigentes políticos e onde nunca se sabe quem o fez. E não há nada mais triste do que ver os guineenses com vergonha. Quanto aos acontecimentos, depois de uma segunda-feira de reclusão, hoje fui tentar trabalhar e tive que fugir para casa porque havia confusão no Bandim. Primeiro constou que sem tiros, logo a seguir já os havia. Vim por atalhos porque a polícia tinha cortado o trânsito na Chapa. Passei por bairros e pensei "Tenho que fotografar isto para o blog" e senti-me culpada por esse olhar de repórter de meia-tigela. Impossível fotografar o que quer que seja ou quem quer que seja. A polícia de Bissau não deixa e a minha também não.